Na ousadia de sair do senso comum pode estar a explicação para uma das conquistas que mais se sobressaem no currículo da escritora, editora e professora estadunidense Toni Morrison: há 20 anos, ela recebeu o cobiçado Prêmio Nobel – no caso, o de Literatura. Uma conquista admirável, se levarmos em conta que menos de 10% de mulheres – negras, como ela, ou não – conquistaram o prêmio sueco, criado em 1901.
E é com a acadêmica, atualmente com 83 anos, e que também já faturou o Pulitzer, que o Hoje em Dia conversou com exclusividade para lembrar o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, evidenciado na próxima sexta, 25, em vários países.
Cumpre lembrar que as aludidas ousadias de Morrison tiveram como pano de fundo um período em que, nos Estados Unidos, falar sobre causa negra por meio da arte ainda era tabu. Passado o tempo, a autora segue a viver com autenticidade. A cabeleira, hoje grisalha, sustenta dreads e boinas de crochê. Outra “inconformidade”? “Ainda escrevo a lápis e luto para transferir o texto ao computador”. O Nobel, lembra ela, ainda reverbera nos “muitos convites para palestras”. O que, para uma senhora na casa dos 80, representa, sim, um certo esforço.
A “força visionária” de Toni – uma definição da própria academia sueca para ela – está presente com intensidade em seus livros. A americana estreou como romancista em 1970, com “O Olho Mais Azul”. Mas o livro mais festejado de Toni é “Amada”, com o qual ela venceu o já citado Pulitzer, em 1988. Em 2006, a publicação foi eleita, pelo “New York Times”, o livro de ficção mais importante dos últimos 25 anos nos Estados Unidos.
A história se passa depois da guerra civil, quando a escravidão havia sido abolida nos Estados Unidos. Nela, uma escrava foge com os filhos de uma fazenda, na qual era mantida cativa.
Prêmio Nobel quis morar no Brasil
Mesmo com a fama, ainda sente o racismo?
Toni Morrison – Racismo é um vírus cuja doença provocada não tem cura. E os portadores dessa doença diminuem e crescem de acordo com a política e o lucro. Pessoalmente, eu sempre me senti moralmente superior aos racistas e de uma forma imune. Afinal, sem racismo, racistas não são nada. Eles precisam dessa doença para abrandar a sua miséria.
Que memória tem sobre o nosso país?
Estive no Brasil duas vezes antes de Paraty (Festa Literária, em 2006). No Rio de Janeiro e em viagens à Bahia e à Minas Gerais. As paisagens, o povo, a cultura me encantaram. Eu sempre pensei que se eu tivesse que deixar os EUA eu iria me mudar para o Brasil imediatamente.
Que outras “escravidões” precisam ser superadas em nosso século?
As gerações futuras podem muito bem rejeitar todas as formas de escravidão. Os jovens, parece-me, são mais sensíveis e mais indignados do que os velhos por causa da opressão que sofreram.
Um trançado cultural pelo livro
“Sabe por que eu não queria ser negra quando criança? É que nas ilustrações dos livros, as negras eram feias, cheias de estereótipos”, lembra a editora Maria Mazarello Rodrigues, a “Mazza”, que há 33 anos mantém uma editora em Belo Horizonte e dedica-se à publicações para questões étnico-raciais.
Mazza decidiu abrir o empreendimento depois de um mestrado como bolsista pela Europa, somado às lembranças de um passado como criança num Brasil com pouca ou quase nenhuma publicação voltada para a questão cultural dos negros. A editora tornou-se então uma das pioneiras e das mais duradouras experiências empreendedoras no segmento.
Nas mais de três décadas à frente da Mazza Edições, a editora estima que já tenha publicado mais de 300 títulos com a temática. Ela calcula que entre dez e vinte escritoras são negras.
Mas não é pouco? “Hoje, este número mais que triplicou. Pois quando comecei, não tínhamos mais que quatro escritoras negras”, compara. Um dos impulsos para isso é a Lei Federal 10.639 (2003), que inclui no currículo escolar o ensino da cultura afro-brasileira. Daí, novas escritoras despontaram e passaram a ter livros comprados pelo governo. Mas isso não significa que a Mazza Edições não publique livros de brancos, árabes ou orientais. “Isso seria racismo”, constata.
Uma das autoras mais lidas do “casting” de Mazza é a educadora Nilma Lino Gomes. Mineira de Ponte Nova, ela tornou-se “a primeira mulher negra no Brasil a comandar uma universidade federal”. Hoje, é reitora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
“A questão para mim não é ‘ser uma escritora negra no Brasil, hoje’. É ser uma escritora negra, no Brasil, que assume o lugar político da sua produção literária”, explica a reitora. Nilma diz que quando escreve sobre trajetórias dos negros, destaca sua infância, numa narrativa que pensa no caráter libertador da literatura para tantos leitores negros, brancos e indígenas.
“Eles poderão ter contato, já na infância, com livros que exploram, de forma literária, a beleza, a força e a garra dos negros e negras brasileiros. Meus livros são um exercício de reconhecimento e esperança”, acrescenta, concordando com Mazza sobre a filosofia editorial do grupo.
Nilma escreveu um dos xodós da editora, o livro para crianças “Betina” (2009), sobre a história de vida da cabeleireira Betina Borges (Foto acima), outra pioneira, mas nos salões de beleza voltados para afro-descendentes – ou não. “Com esse livro, já fui a dezenas de escolas. Faço trancinhas nas meninas negras. E as meninas brancas também pedem”, alegra-se a cabeleireira.
A literatura antes e depois de Carolina
A dona de uma das vozes pioneiras da literatura negra no Brasil chama-se Carolina Maria de Jesus (1914–1977), cujo centenário de nascimento está sendo lembrando neste ano.
Durante uma reportagem sobre a expansão da favela do Canindé, em São Paulo, o jornalista e escritor Audálio Dantas, encontrou-se com a catadora de papel que até hoje já vendeu 80 mil livros no Brasil e que foi traduzida para 15 idiomas.
Na época uma desconhecida, virou-se para Dantas e disse que colocaria no livro dela o nome dos homens que estavam ocupando uma área de lazer das crianças na favela.
Autoconfiança demais? Dantas diz que Carolina já tinha procurado jornais para mostrar os manuscritos, mas que não quiseram ouvi-la. “Eu quis. Repórter tem que estar despido de querer tomar partido. Mas se for tomar, tome o partido do lado mais fraco. Esta é a minha filosofia”, defende.
Nas primeiras dez linhas lidas, Dantas percebeu que aquilo tinha muito valor. “Era um texto documental de muita importância. A letra dela era bastante razoável, fácil de ler, mas com todas as falhas de ordem gramatical. Mas neste caso, a gramática não tinha tanta importância”, considera.
Saindo da favela
Entre os livros publicados, o mais conhecido é “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. A publicação, lançada no início dos anos 1960, relata o dia a dia na favela.
“Depois do livro, ela comprou uma casa, não se deu bem com a vizinhança, comprou um sítio, e lá viveu”, diz o jornalista que a ajudou na compilação de alguns títulos.
Segundo Dantas, Carolina Maria de Jesus, durante esses anos, é um nome recorrente na vida dele. “A memória é que ela protagonizou um fato importantíssimo. Ela tornou-se uma referência por vários intelectuais. É considerada literatura marginalizada, mas literatura. Muita gente torceu o nariz na época”.
Se hoje há uma literatura da periferia, acredita Dantas, é “evidente” que Carolina influenciou esta questão.
A agenda de eventos em todo Brasil sobre o centenário de nascimento da escritora pode ser conferida no perfil facebook.com/anocentenariocarolinamariadejesus.
O porquê
O Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha foi criado em 25 de julho de 1992, durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, na República Dominicana. O dia é o marco internacional da luta e da resistência da mulher negra.
Fonte: http://www.geledes.org.br/toni-morrison-fala-sobre-o-dia-da-mulher-afro-latino-americana-e-caribenha/
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